Calheiros, num negócio crivado de estranhezas
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Nos últimos anos, a fortuna
de Renan Calheiros
e de sua família não pára de crescer.
Somente
uma transação com a cervejaria Schincariol
rendeu 17 milhões de reais de lucro
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Em 2003, o deputado Olavo Calheiros,
irmão do senador, resolveu abrir a Conny Indústria e Comércio de Sucos e
Refrigerantes, em Murici, no interior de Alagoas, terra natal dos
Calheiros. Ganhou, de graça, um terreno de 45.000 metros quadrados,
avaliado em 750.000 reais. O doador foi a prefeitura de Murici, na época
comandada por Remi Calheiros, irmão de Olavo e Renan. A prefeitura
também deu à fábrica isenção por três anos no pagamento de água, insumo
essencial para uma fábrica de refrigerantes. Com terreno e água de
graça, Olavo bateu à porta do Banco do Nordeste, o BNB, e conversou com o
gerente José Expedito Neiva Santos, que fez gestões junto ao BNDES para
conceder ao deputado um empréstimo de 6 milhões de reais, com
vencimento em vinte anos. O gerente Expedito Santos aceitou, como
garantia do empréstimo, a escritura de uma fazenda que o Ministério
Público suspeita ser falsificada. Concluído o empréstimo, o gerente, por
indicação de Renan Calheiros, foi promovido a superintendente estadual
do BNB em Alagoas.
Com
fábrica instalada, água e terreno de graça
e dinheiro para pagar em duas décadas, a Conny, ainda
assim, foi um completo fracasso. Três anos depois, só
vendia refrigerantes na região de Murici. Tinha apenas
0,1% do mercado nordestino. Devia 150.000 reais em contas
de luz, não pagava o empréstimo e já
devia 9,9 milhões de reais ao BNDES. A situação
era tão lamentável que a fábrica recorria
contra dívidas irrisórias. Entrou com ação
judicial para não pagar a anuidade de 1.600 reais ao
Conselho Regional de Química. Também foi à
Justiça para não pagar 3.600 reais por ano de
taxa de fiscalização ao Ibama, o órgão
que cuida do meio ambiente. Sofria até ação
de cobrança do Inmetro, que fiscaliza o padrão
e a qualidade dos produtos no país. O Inmetro cobrava
900 reais da fábrica dos Calheiros. Com as contas no
vermelho e prestes a fechar as portas, a fábrica conseguiu
ser negociada por 27 milhões de reais. Olavo pagou
as dívidas – e embolsou 17 milhões de reais,
limpinhos, conforme a Secretaria de Acompanhamento Econômico
do Ministério da Fazenda, que autorizou o negócio.
Na época, a Schincariol
explicou que comprara a fábrica para expandir sua presença
no mercado nordestino. Pagou um preço exorbitante.
Um especialista no setor ouvido por VEJA diz que se constrói
uma fábrica semelhante à da Conny com 10 milhões
de reais – menos da metade do que a Schincariol desembolsou.
Em junho passado, a mesma Schincariol comprou a Indústria
de Bebidas de Igarassu, no interior de Pernambuco, que fabrica
a cerveja Nobel. A Igarassu é maior do que a fábrica
dos Calheiros, tem 10% do mercado de Pernambuco e capacidade
para produzir 5 milhões de litros por mês, contra
4,5 milhões da fábrica dos Calheiros. Ainda
assim, mesmo sendo maior e mais importante, a Igarassu saiu
por 10 milhões de reais. Em janeiro passado, a cervejaria
Baden Baden, de Campos do Jordão, no interior paulista,
famosa por fabricar cerveja artesanal, também foi adquirida
pela Schincariol. A Baden Baden faturava 5,5 milhões
por ano e vinha aumentando sua participação
no mercado de produtos sofisticados. Saiu por 30 milhões
de reais, apenas um pouco a mais do que a Conny dos Calheiros.
A pergunta que fica é: por que a Schincariol pagou
tanto à família Calheiros?
As atividades do
senador Renan Calheiros em Brasília podem ser uma pista. Depois que a
fábrica em Murici foi vendida, o senador interessou-se pelas
dificuldades da Schincariol em Brasília, já que, um ano antes, seus
cinco dirigentes haviam sido presos pela Polícia Federal sob acusação de
sonegação de 1 bilhão de reais. O senador esteve pelo menos três vezes
no Ministério da Justiça para saber dos desdobramentos da Operação
Cevada, que prendeu os donos da cervejaria. Também andou visitando a
cúpula do INSS, que planejava executar dívidas previdenciárias de cerca
de 100 milhões de reais da Schincariol. As dívidas, como que por
mistério, não foram executadas até hoje. Ou melhor: o INSS executou,
sim, mas apenas uma dívida de 49.700 reais. Renan Calheiros andou,
também, pela Receita Federal, onde chegou a falar sobre uma multa
milionária que o órgão aplicaria à Schincariol. Sabe-se lá por quê, até
hoje a empresa não sofreu multa milionária nem a cobrança do 1 bilhão de
reais sob suspeita de sonegação. Melhor que isso: a Receita, em vez de
manter a contabilidade da dívida centralizada, pulverizou-a pelos seis
estados onde a Schincariol tinha fábrica na época. Isso complica e
retarda uma cobrança de dívida.
Na semana passada, depois da
sessão do Senado em que os parlamentares pediram o
afastamento de Renan Calheiros, o Conselho de Ética
voltou a trabalhar, escolhendo três relatores para o
caso. Decidiram completar a perícia da Polícia
Federal sobre a papelada dos negócios do senador e
analisar a evolução do seu patrimônio.
A venda da fábrica em Murici, formalmente, está
fora da investigação porque foi um negócio
do deputado Olavo Calheiros, e não do senador. No entanto,
os negócios de ambos se entrecruzam o tempo todo. Um
compra fazenda do outro. Um arrenda terras para o outro. O
gado de um anda na fazenda do outro, e vice-versa. Os dois
também se revezam no Congresso quando se trata de despejar
dinheiro na obra do Porto de Maceió, tocada pela empreiteira
Mendes Júnior. Em 2001, 2002 e 2003, o deputado fez
emendas para a Mendes Júnior. Nos anos seguintes, 2004
e 2005, foi a vez do senador. Sob esse aspecto, a modesta
fábrica de tubaína em Murici que conseguiu ser
negociada por 27 milhões de reais poderia despertar
a atenção dos membros do Conselho de Ética.
A suspeita que o negócio desperta é a seguinte:
será que, além de usar o lobista da Mendes Júnior,
o próprio senador Renan Calheiros se converteu num
lobista da cervejaria Schincariol? Ninguém sabe, mas
há duas certezas na história. Uma delas é
que a cervejaria tem apreço pela família Calheiros,
tanto que foi a principal financiadora da campanha do deputado
Olavo Calheiros e do seu outro irmão, o deputado Renildo
Calheiros. Ambos receberam 200.000 reais da empresa. A outra
certeza é que os irmãos atuam como líderes
da bancada da cerveja, composta de 41 parlamentares que defendem
os interesses do setor. A Schincariol diz que vai começar
em breve a fabricar o suco Skinka em Murici, mas prefere não
fazer nenhum comentário sobre sua relação
com o senador Renan Calheiros e seus irmãos deputados.
Com reportagem
de Ricardo Brito e Otávio Cabral
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